Quando a cidade deixa de ser educadora
Retomei recentemente a leitura do livro Confiança e medo na cidade do sociólogo polonês Zigmunt Bauman. Tal leitura me fez refletir sobre o quanto nossas cidades deixaram de ser espaços educadores para se tornarem espaço do medo. Conforme anunciado no próprio título, o livro aborda a paradoxalidade dos sentimentos de horror e atração, medo e confiança, que se redesenham as cidades do nosso tempo. Na análise de Bauman, as cidades, desde as suas origens, sempre foram lugares educativos onde era possível conviver com o outro, com o “estrangeiro”, com o diferente. Por essa razão, as cidades eram tidas como o lugar da efervescência cultural, da pluralidade, da multiculturalidade, da tolerância, do compartilhamento de experiências díspares. Em nosso tempo, porém, a cidade está se tornando o espaço do medo e da insegurança. O “estrangeiro” passa a ser apartado por marcas urbanas da diferença: bairros próprios, grades, muros e todos os mecanismos possíveis de segregação. Por essa lógica entendemos os motivos pelos quais em todas as médias e grandes cidades surgem a cada dia novos condomínios e as mais variadas formas de “serviços de segurança”. O valor destes condomínios é medido pela altura dos muros e pelas sofisticadas ou “inovadoras” formas de segurança.
A cidade, outrora local de convivência, de contatos freqüentes, de vida social intensa, de educação compartilhada, está se tornando espaço de segregação onde os muros estão cada vez mais altos ao redor das casas, dos condomínios, dos parques, das praças, das escolas, dos escritórios. No dizer de Bauman, “a nova estética da segurança decide a forma de cada tipo de construção impondo uma lógica fundada na vigilância e na distância”. É essa lógica que produz um mal-estar que alimenta a lucrativa rede de serviços e produtos voltados para garantir a “falsa” segurança dos cidadãos que podem pagar câmeras de vigilância, condomínio fortificados, carros blindados, dispositivos que afastam intrusos e indesejáveis, cercas elétricas, seguranças particulares, monitoramento 24 horas.
É neste cenário que vivemos hoje a mixofobia (medo de misturar-se). Todos os que têm dinheiro suficiente para pagar, ou crédito potencial para quitar futuramente o investimento, adquirem um lugar para morar num condomínio fechado, num regime de confinamento, na doce ilusão de segurança e com a promessa de “vida de qualidade” que custa um alto preço. Para alguns a vida 2/3 de sua vida de trabalho pagando o financiamento que enriquece os bancos e as companhias de crédito. O fator principal das mensagens publicitárias destes empreendimentos é a segurança que se traduz em cercas e muros ao redor do condomínio, guardas 24 horas vigiando os acessos e uma série de aparelhagens e serviços que servem para manter afastados aqueles que se apresentam como ameaça ao suposto “bem estar”.
Assim, as cidades estão se tornando espaços de segregação, de confinamento, de privação e de medo difuso. No entendimento de Bauman, essa mixofobia não passa da difusa e muito previsível reação à impressionante e exasperadora variedade de tipos humanos e estilos de vida que se podem encontra nas ruas das cidades contemporâneas. Uma vez que a multiforme e plurilingüística cultura do ambiente urbano na era da globalização impõe, as tensões derivadas da “estrangeiridade” incômoda e desorientadora desse cenário acabarão, provavelmente, por favorecer as tendências segregacionistas. Talvez seja oportuno perguntar: é este o progresso e a inovação que o crescimento das cidades foi capaz de produzir? Vida de bem sucedida e promessa de felicidade significa “gastar a vida” pagando financiamento por uma suposta segurança que nem sempre se concretiza? Talvez tenhamos que pensar nosso modo de vida, nosso modelo societário e a dimensão solidária de viver.