A crise da democracia liberal


 

 

Manuel Castells é considerado um dos principais analistas da era da informação das sociedades conectadas em rede e foi qualificado pela revista inglesa The Economist como sendo o primeiro e mais importante filósofo do ciberespaço. Sua abrangentes investigações abordam os efeitos da informação sobre a economia, a cultura e a sociedade em geral.

No ensaio Ruptura: a crise da democracia liberal, um dos seus últimos livros traduzido em 2018 para o português, ao analisar o turbilhão de múltiplas crises que se abatem sobre o mundo, Castells sentencia: “sopram ventos malignos no planeta azul”. De fato, a crise econômica que se prolonga e agora se agrava com a pandemia do Covid-19, produz precarização do trabalho e aumento da desigualdade social; os distintos fanatismos que se espalham no mundo alimentam o medo e produzem insegurança e insanidade; a permanente ameaça de guerras atrozes como forma de lidar com os conflitos, fomentam atitudes de intolerância e reacendem profundas chagas sociais como racismo, fascismo, xenofobia e misoginia; as inúmeras violações aos direitos humanos e à vida, prolifera o sentimento de abandono da rede de proteção do Estado; a destruição dos recursos naturais patrocinado por uma mentalidade limitada que só consegue fazer um cálculo contábil simplificado, produz a destruição ambiental em proporções nunca vistas.

Para Castells, existe uma crise ainda mais profunda, que tem consequências devastadoras sobre a (in)capacidade de lidar com as múltiplas crises que envenenam nossas vidas: a ruptura entre governantes e governados. É essa ruptura que produz a desconfiança nas instituições modernas que nos trouxeram até aqui. As pessoas estão deixando de acreditar na representação política e passam a se convencer que os políticos já não nos representam, que não vale mais apenas salvaguardar certos princípios democráticos. Assim, vemos pessoas pedirem deliberadamente ditadura, intervenção militar, Lei de Segurança Nacional, censura, execução sumária como forma de resolver a insegurança. 

Na análise de Castells, a crise da democracia liberal resulta da conjunção de vários processos que se reforçam mutuamente. A globalização da economia e da comunicação, por exemplo, solapou e desestruturou as economias nacionais e limitou a capacidade dos países de responder em seu âmbito a problemas que são globais na origem, como podemos ver recentemente com as crises financeiras, a violação dos direitos humanos, a mudança climática, a economia criminosa que condena à miséria milhões de pessoas enquanto ricos investidores desperdiçam seus lucros em bens luxuosos de consumo que degradam os bens ambientais. O paradoxo desse processo é que foram os próprios países e seus mandatários que estimularam a globalização, o desmantelamento das regulações e fronteiras, o livre comércio, o enfraquecimento do Estado responsável pela proteção social. Quando uma crise sanitária como a Covid-19 se abate sobre o mundo, percebemos a fragilidade da nação em proteger os desamparados que não tem a quem recorrer. 

Assistimos hoje a um perverso e sutil processo de empobrecimento de uma parcela cada vez maior da população, enquanto pequenas elites cosmopolitas se tornam cada vez mais poderosas e passam a decidir a vida e a morte dos que foram excluídos do acesso aos bens produzidos pelo trabalho e pela exploração da natureza. Tais elites foram generosamente agraciadas pelos ventos da privatização. Ao privatizar os bens naturais, os serviços sociais básico (água, luz, educação, saúde, transporte, saneamento e, inclusive a política) sutilmente a democracia liberal acabou possibilitando que “os ricos se tornassem cada vez mais ricos, sobretudo no vértice da pirâmide, e os pobres cada vez mais pobres”. Assim, vemos um Estado cada vez mais submissão aos grupos econômicos que se utilizam da própria política e da democracia liberal para instrumentalizar o Estado e, assim, ampliar cada vez mais seus privilégios por meio de isenção de impostos e de proteção do seu patrimônio, enquanto a grande parcela da população fica desassistida das condições básicas de uma vida digna. O mais desastroso nessa “moribunda democracia liberal” é que esse perverso processo é legitimado pela própria população que ilusoriamente acredita que escolhe seus representantes.

 

A democracia tem muitos defeitos e não faltariam adjetivos para indicá-la. No entanto, ainda é a melhor forma de organizar o mundo, a economia, a política e as questões sociais. Somente quem é ignorante da história e destituído da capacidade de pensar para se insurgir contra a democracia. Precisamos defendê-la, protegê-la e fortificá-la se não quisermos que a sociedade reinstaure a barbárie que sempre ronda nossa existência e ganha força quando o caos é instaurado.